Eu sou (dói-me admitir) um nerd. O mais básico de todos, o homem branco gordo de óculos e barba com mais de 30 anos. Eu sou o público-alvo de quase tudo que a Marvel fez até agora. Porém, eu com certeza não sou o público-alvo de Ms. Marvel. E isso é ótimo.
Ms. Marvel é um dos seriados mais aguardados do Disney+ desde o seu anúncio. A personagem, originalmente, foi um sopro de ar fresco na editora Marvel — a criação de G. Willow Wilson e Adrian Alphona é uma adolescente de origem paquistanesa que ganha poderes (cuja origem é complicada demais para explicar aqui… mas já voltamos neste assunto) e precisa lidar com os problemas típicos da adolescente mais seu novo super-heroísmo mais questões muito profundas de identidade étnica e religiosa. O gibi original é ótimo, e trouxe toda uma nova leva de leitores e fãs aos heróis da Casa das Ideias, dentro de um recorte demográfico para os quais os heróis normalmente não apelavam mais.
Por isso, quando a série foi anunciada, foi recebida com ampla comemoração, mas também com certo receio. Afinal, modificar demais e “estragar” um Cavaleiro da Lua é uma coisa — só eu e mais umas três pessoas perdidas na vida se importam com esse personagem. Mas a Kamala já é uma personagem importante e querida, além de culturalmente muito significativa. Essa, a Marvel não podia errar.
E ela não errou — ou, pelo menos, acertou no que devia acertar. O que Ms. Marvel precisava ser era um seriado adolescente, e é exatamente isso que ele é. A trama é basicamente a mesma que descrevi acima sobre o gibi, com a diferença da origem dos poderes, mas os poderes (pelo menos nos primeiros episódios) não são o que mais importa. O que importa é ver Kamala Khan em família e entre amigos; sua relação complicada com a mãe rígida, sua cumplicidade com Bruno e Nakia, e a espécie de triângulo amoroso que se forma quando Kamran entra em cena. Essas coisas são reais, palpáveis, mesmo que sob um filtro de comédia romântica teen da Netflix — o que pode ser uma descrição que afaste alguns leitores que se pareçam comigo, mas eu digo que é exatamente o que devia ser, para o público que precisa atingir.
Os dois primeiros episódios têm dois pontos muito fortes. O primeiro, como já dito, são os relacionamentos da Kamala com o restante do elenco, e, claro, a própria Kamala Khan. Iman Vellani traz muita realidade à Kamala, criando uma adolescente sonhadora, divertida, ainda com dificuldades de se encaixar e extremamente carismática (se tem algo que não podemos criticar no MCU no geral, é a escalação de elenco — foi, por exemplo, a única coisa que salvou Cavaleiro da Lua). O Bruno Carelli de Matt Lintz forma uma ótima dupla com ela, dividindo suas “nerdices” e ainda sendo aquele típico bom rapaz que a família da amiga gosta muito e que claramente vai namorar com ela alguma hora (sou #TeamBruno até o fim). A Nakia de Yasmeen Fletcher cumpre uma função muito interessante: é ela que traz com mais força os elementos culturais paquistaneses à história (além da própria Kamala e a família Khan, claro), com seu engajamento político na comunidade que envolve a mesquita, mas o seriado também toma cuidado para não cair numa estereotipação rasteira. E tem o Kamran de Rish Shah… mas já chegamos lá. E, claro, a família da Kamala é um elemento fundamental e muito sensível, que precisava encontrar um equilíbrio entre serem “vilões” na vida da adolescente (sabe, aquele velho “meus pais não me entendem!!”) sem parecerem negativos demais — e funciona.
O outro fator que faz com que Ms. Marvel se sobressaia, em certa medida, a boa parte do restante das produções da Marvel Studios, é seu design de produção. É uma das produções mais esteticamente criativas de todo o MCU, uma riqueza e inventividade que só vimos em coisas como Thor: Ragnarok ou WandaVision. É algo que lembra muito os grafismos de Scott Pilgrim Contra o Mundo: a série se utiliza muito de brincadeiras com os cenários, ilustrando textos nas ruas, paredes, letreiros etc. Em vez de simplesmente mostrar uma tela de celular com as mensagens de texto entre Kamala e Bruno, a conversa invade as ruas e vira neons de lojas. Quando Kamala tem uma ideia conversando com os pais, o “blocking” da cena é inteligente e faz com que a garota esteja posicionada abaixo de uma lâmpada que acende no momento do “eureka”. É um respiro muito necessário em meio à fotografia cansada e acinzentada do MCU, e que faz completo sentido em Ms. Marvel, como reflexo da imaginação da menina, que vive no próprio mundinho mais do que na realidade.
Essas são todas as coisas que fazem Ms. Marvel ser um bom (ou talvez ótimo) seriado adolescente, e ser muito gostoso de se assistir no geral. Mas ele ainda precisa ser um seriado de “super-herói”, e é aí que algumas coisas começam a desandar um pouquinho.
Em dois episódios, a trama em si mal foi desenvolvida. Mas já está mais ou menos claro que a origem dos poderes da Kamala, nesta versão live-action, estará intrinsicamente ligada com os inimigos da heroína. Como já explicamos aqui no Geek Here antes, nas HQs, seus poderes despertam por conta da bomba terrígena, que ativam os genes inumanos em todos que tenham isso dentro de si no mundo. Como, no MCU, os inumanos devem ser deixados de lado (mesmo com a participação especial do Raio Negro no segundo Doutor Estranho), a origem dela teria de ser modificada. Aqui, ela recebe braceletes da avó, como se fossem badulaques velhos da família que ninguém quer ficar. Os tais braceletes têm história, algo envolvendo uma pessoa, anos atrás, “envergonhando” toda a família. Esse ramo da família parece ser o que forma os vilões da série, já que enviaram Kamran para encontrar Kamala e os braceletes.
E isso… muda coisas. Muitas coisas. Antes de mais nada, existe a tendência que Cavaleiro da Lua e Shang-Chi já vêm demonstrando no MCU, de personagens “menores” (pelo menos em relação a um Hulk ou Thor…) nessas produções mais recentes terem suas origens… “melhoradas” para a transição do live-action, como se o original fosse “simples demais”. Aqui, a abordagem é bem próxima do Shang-Chi, aparentemente ligando seus poderes a algum fator sobrenatural ou divino — um movimento que parece ter relação com uma certa mudança no MCU, apostando mais no “mágico” que no científico, nesta nova fase.
Além disso, a história de origem da Ms. Marvel nas HQs tem muito a ver com sua busca pessoal por identidade. Este tema está presente neste seriado, principalmente no âmbito dos relacionamentos interpessoais da garota. Mas, nos gibis, o fato de ela ter um poder que modifica seu corpo e permite que ela se disfarce (além de ela automaticamente se transformar numa mulher branca, apagando sua própria etnia) é extremamente importante para esses debates, e isso se perde aqui. Ainda há muito a ser visto, claro, então precisamos esperar o roteiro se desenvolver, mas, até o momento, é um tanto estranho trocar algo externo, estranho, por algo que já está ligado à sua herança étnica e cultural. Além, claro, do fato de os poderes dela nas HQs serem propositalmente “ridículos” visualmente: ela fica com uma mãozona, estica o braço e tudo mais, e isso pode ser visto como “feio”, principalmente para uma menina adolescente, e tudo que o adolescente quer evitar é passar por ridículo. Aqui, é uma projeção energética bem bonitinha, e até isso se perde.
Há muito de positivo em Ms. Marvel. O que há de negativo, é o que já esperávamos: a mudança de seus poderes. A trama super-heróica, da “conspiração” (??) que envolve Kamran e o passado da família, até o momento, parece um tanto deslocada, mas isso é provável que tenha a ver com o fato de a parte que funciona, o drama adolescente, ser muito superior, a ponto de mal precisarmos que ela tenha que enfrentar bandidos ou vilões. Mesmo com os tropeços, Ms. Marvel dá todos os sinais de que pode ser (seja lá o que isso signifique), o melhor seriado da Marvel no Disney+.
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